Dulcina de Moraes: memórias de Bárbara Heliodora

Hoje em dia é muito difícil termos tempo e paciência para lermos o jornal diariamente. Entretanto, todas as vezes que o faço, procuro extrair com atenção tudo que posso. Outro dia, um cabeleireiro me disse, enquanto eu aguardava ser atendida: “Uns veem revista, outros leem”. Procuro me encaixar no segundo grupo.

É por essas e tantas outras, que pela primeira vez reproduzo o conteúdo de um artigo de jornal. Tomei o cuidado de verificar minimamente as questões de direito autoral relacionadas a esse tipo de prática e deixo claro aqui que se os envolvidos se sentirem prejudicados com a veiculação desse material, peço que entrem em contato comigo que o texto será prontamente removido.

 

ARQUIVO ABERTO -MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Lembranças de Dulcina

Rio, década de 1930

BARBARA HELIODORA*

A NOTÁVEL DULCINA de Moraes tem sido esquecida ou até repudiada por ter montado o único repertório admissível para o clima cultural das plateias do Rio no final da década dos 1920 e toda a dos 30. Ela foi a figura maior de nossos palcos então, e sua fé de ofício lhe faz merecer respeito e admiração.

Quando Dulcina e Odilon, seu marido, viram em Nova York por volta de 1937 o cuidado com que o repertório dito comercial era lá montado, passaram a ter em suas encenações um acerto e uma qualidade até então desconhecidos aqui. Foi a sua companhia que acabou com os cenários pintados e passou a usar os construídos, assim como foi sua companhia a primeira a ter uma folga semanal.

Lutando também fora de cena, foi Dulcina quem conseguiu acabar com a obrigatoriedade da carteira de prostituta para atrizes. Não é justo condenar uma atriz de tantos méritos por montar o único teatro que a sua época queria ver.

A memória é estranha; dentro de mim eu vejo Dulcina em cena, sua presença vital, sua peculiar prosódia, seu domínio do espaço cênico que a destacavam sem qualquer esforço ou exagero que prejudicasse a harmonia do espetáculo; se não posso levar outros a senti-la tão viva, gostaria de ao menos lembrar aos de hoje o seu grande talento.

O mundo de Dulcina foi o do ofendido e humilhado teatro de boulevard; com tramas hábeis, esses textos dependiam do brilho dos atores para conquistar o espectador. Eu gostaria de poder transmitir a lembrança da alta categoria, da justeza do timing da atuação de Dulcina, que tornou para mim inesquecível, por exemplo, um momento de uma rotineira comédia chamada “Os Homens Preferem as Viúvas”, dos últimos anos da década de 1930.

A trama era fácil: uma moça solteira vendo o tempo passar lê no jornal a notícia da morte de um famoso playboy e, com base na ideia afirmada pelo título da peça, explode em desespero pela morte “do meu” fulano de tal, que na verdade ela jamais conhecera.

O momento inesquecível vinha no segundo ato: o playboy não morrera e a chegada dele à casa de sua suposta noiva está tendo larga cobertura de rádio, fotógrafos etc. Apavorada com a ideia de enfrentar o desconhecido, Dulcina, com seu jeito personalíssimo, exclama “Santa Terezinha, mãe dos aflitos, mata esse homem!”, e até hoje eu a vejo e ouço, desesperada tanto com a chegada dele quanto com a mentira que criara; naquele instante, em uma comédia rotineira e uma fala sem maior originalidade, eu vi, com certeza, um memorável momento de teatro, pelo simples fato de uma atriz saber dizer sua fala no tom exato que se poderia esperar daquela personagem naquelas circunstâncias.

Outro momento inesquecível veio no final de 1955, em “Poeira de Estrelas”, no Municipal do Rio, com roteiro de Lucia Benedetti, onde nossos melhores nomes de teatro apareciam vivendo seus mais consagrados personagens. O evento angariava fundos para a Fundação Brasileira de Teatro, a sonhada escola de atores de Dulcina; já quase no fim aparecia Dulcina como Sadie Thompson, a protagonista de “Chuva”, de Somerset Maugham; seu sucesso fora imenso e, na praça Tiradentes, o grande Oscarito apresentara uma divertida paródia do drama.

Dulcina de Moraes, no papel de Sadie Thompson, na peça ‘Chuva’, adaptação teatral de John Colton e Clemence Randolph, baseada no original de Somerset Maughan, 1946. Foto: Wilenski, Buenos Aires Origem: Site FUNARTE – Brasil Memória das Artes

 

Dulcina entra em cena, mas logo sai para buscar a sempre presente vitrola de Sadie, e entra Oscarito, com a mesma saia justa azul e blusa de organdi branco com imensos poás vermelhos. O encontro desses dois supremos comediantes, ótimos atores e donos de todos os truques que o teatro já conheceu, é uma joia preciosa na minha coleção de memórias teatrais.

Disciplinados e precisos quando necessário, os dois exploraram a incrível extensão do acervo de cada um, mas sem perder o controle do que era feito, ou esquecer a essência do que a cena devia apresentar. Meninos, eu vi; e, como puro teatro, com eles aprendi.

*BARBARA HELIODORA, 88, é crítica teatral do jornal “O Globo”, e autora de “Falando de Shakespeare” (Perspectiva).

Texto disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il1610201108.htm
(Disponível para assinantes do jornal Folha de São Paulo e do UOL – empresa controlada pelo Grupo Folha, que edita a Folha).

Além de visualizar cada memória proposta por Heliodora, seu texto nos mostra a produção teatral da época, e as visões do fazer teatral. O que você achou?

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